Poucos sabem, mas eu sou um admirador sincero e intenso do espetáculo popular que chamam de “Boi de Mamão”, um teatro de rua com música e dança característico das regiões litorâneas de Santa Catarina – principalmente Florianópolis, onde vivo.
No nordeste do país existe algo bem parecido, o tal “Boi Bumbá”, que eu nunca vi e nunca estudei sobre.
Vou falar do Boi de Mamão, pois ele é de Mamão da cabeça até o chão, vem cá meu boi, vem cá.
Mas do que se trata esse tal boi?
Para mim é difícil falar sobre, então eis a definição mais popular, que circula em várias páginas sobre o assunto na internet:
O Boi-de-Mamão é um folguedo que envolve dança e cantoria em torno do tema épico da morte e ressurreição do boi. Esta brincadeira é encontrada em várias partes do país, recebendo diferentes nomes. No nordeste é conhecido como “Bumba Meu Boi” ou “Boi Bumbá”, em Paraty (Rio de Janeiro) como “Boi Pintadinho”.
Em Santa Catarina a brincadeira está presente em quase todos os municípios do litoral com o nome de “Boi-de-Mamão”.
Origem: Antigamente, a brincadeira era conhecida em nosso litoral como “Boi de Pano”, mas ocorreu que, com a pressa de fazê-lo, utilizaram um mamão verde para fazer a cabeça do boi. Daí recebeu o nome de Boi-de-Mamão, mantido até a época atual, onde se vê cabeças de todos os tipos, até mesmo de boi, menos de mamão.
A descrição mais antiga do folguedo, em Florianópolis, é de 1871 feita pelo historiador José Arthur Boiteux.
Mas o que é um folguedo?
Eis o que é um folguedo:
Folguedos são festas populares de espírito lúdico que se realizam anualmente, em datas determinadas, em diversas regiões do Brasil.
Ótimo.
O que me incomoda é que isso não diz muito. Seria preciso participar. É divertido. É preciso participar, ou pelo menos assisitir, a um desses espetáculos, com todo o espírito de recepção folclórico-urbano alegre que esse tipo de espetáculo promove. E, sabe, eis um dos motivos pelos quais eu estou escrevendo esse texto:
Boi de Mamão é muito mais legal do que a maioria dos jovens imagina.
É engraçado: sempre que eu digo ser admirador desse espetáculo, as pessoas da minha idade reagem com estranheza e curiosidade. Todos acham, até onde vi, que deve ser uma das coisas mais chatas do mundo. Não as culpo. Na era da hipermídia, sair na rua pra tocar música com instrumentos de verdade e dançar com bonecos de madeira e pano parece muito esquisito. Mas, ei, é sério, a maioria das pessoas deixa escapar muito da beleza disso. Não é um papo emotivo, a coisa é legal mesmo, de verdade, e é sobre ISSO que eu quero falar – esse lado encantador e que muitos não percebem.
Que lado?
Eu poderia me perder nos pormenores tediosos de análise sobre teatro de rua, cultura participativa, comunidades, roleplaying, imersão total em narrativa, folclore e tudo o mais, mas isso não convence ninguém. Vou deixar isso para os leitores. Vou direto para a parte que me toca e que posso explicar aqui:
A trama
Nenhum espetáculo sobrevive a tantas décadas sem ser bom. Já temos um ponto a favor. Mas vamos lá: é possível experimentar as cantigas, os bonecos, a dança… Presenciando o espetáculo. Agora, posso falar da história de antemão, explicando pontos que geralmente passam em branco e que são realmente bonitos.
Para começar, uma sinopse.
Vejam, existem muitas versões dessa história. O elemento comum é bem simples:
O boi de estimação de Mateus, homem simples do interior da ilha, morre. Desesperado, Mateus busca ajuda do médico e curandeiro para ressuscitá-lo. O boi ressuscita, e toda a freguesia festeja.
Mas existem inúmeras versões disso. Eis a beleza da cultura participativa e popular: ela é viva e flexível. Evidentemente, não pude presenciar todas as versões, acho que cada apresentação é inigualável, pois é produzida por diferentes pessoas, em diferentes épocas, sob diferentes influencias, e por mais que a espinha dorsal da trama nunca mude, cada espetáculo tem seu charme especial. Vou contar para voces, no entanto, a versão que mais me cativou durante a minha infancia:
Mateus é um homem simples, que tem como emprego cuidar das propriedades do patrão. Ele e sua esposa estão felizes e um tanto apreensivos, pois a moça está grávida e o bebe nascerá em breve. Mas surge um problema: a futura mãe sente uma vontade irresistível de comer carne bovina, e se esse desejo não for saciado, a criança nascerá com rosto de boi, conforme as crenças locais. Como se não bastasse, o próprio Mateus era afeiçoado ao boi, que criara desde bezerrinho.
Agora o bom homem precisa decidir entre matar seu amigo bovino, o único boi do patrão – e enfrentar sua ira – para salvar o futuro de seu filho, ou permitir que seu bebe tenha cabeça de filé ou um par de chifres, talvez. Caso mate o boi, provavelmente seria demitido e, sem emprego, não conseguiria sustentar a família. Mas há um mistério terrível sobre o destino da criança, pois recusar tal sacrifício poderia condená-lo a ser meio homem, meio boi… Esse é o dilema.
Mateus resolve matar o boi, mas após fazer isso, apela: pede ao médico para que o cure e, depois, a uma feiticeira que lhe faça retornar dos mortos. Assim é descrita a aventura de morte e ressurreição de um boi…
Pode ver que a forma de pensar sobre o assunto pode tornar uma história muito mais impactante.
No próximo post falarei sobre as cantigas – é onde a história realmente começa. E, podem acreditar, muita coisa boa se esconde por trás da simplicidade de canções populares.
Até mais, amigos.